As crises do amor
"Todo homem sofre a experiência do mal, à sua volta e em si mesmo. Esta experiência também se faz sentir nas relações entre o homem e a mulher. Sua união foi sempre ameaçada pela discórdia, pelo espírito de dominação, pela infidelidade, inveja e por conflitos que podem chegar até ao ódio e à ruptura. Essa desordem pode manifestar-se de maneira mais ou menos grave, e pode ser mais ou menos superada, segundo as culturas, as épocas, os indivíduos. Tais dificuldades, no entanto, parecem ter um caráter universal". A Sagrada Escritura não esconde os elementos negativos de crise, presentes em tantas famílias. O primeiro casal em crise é Adão e Eva: um atribui ao outro a responsabilidade pelo pecado. Em seguida as Escrituras narram o desentendimento entre seus filhos, Caim e Abel, que acaba no dramático fim do assassinato. Na família de Noé os filhos não respeitam o pai. Abrão não consegue lidar com a esterelidade de Sara, que lhe sugere gerar um filho com Agar, que depois se torna causa de desentendimento entre os dois. Abrão também passa dificuldades com seu irmão Ló, que por sua vez não consegue ter autoridade sobre a esposa. A família de Jacó também passa pela inveja dos irmãos contra José. A inveja também leva Maria e Aarão a criticar Moisés. A família de Davi é ferida por seu adultério, pelo homicídio e depois pela rebelião de Absalaão, que se revolta contra o pai. Os livros dos reis e crônicas também relata ódios, homicídios e vinganças familiares. A vida em família é uma difícil tarefa, que pode chegar a rupturas e separações. Às vezes a relação entre o casal é minada pela incompreensão mútua ou pela diversidade de pontos de vista; às vezes pela infidelidade ou pela intervenção de terceiros; outras vezes a crise acontece pelo desentendimento entre pais e filhos, outras pelo desentendimento entre os filhos, e outras porque está em crise o relacionamento com Deus. "Segundo a fé, essa desordem que dolorosamente constatamos não vem da natureza do homem e da mulher, nem da natureza de suas relações, mas do pecado. Rompendo-se com Deus, a primeira consequência do pecado foi a ruptura da comunhão original do homem e da mulher. Suas relações começaram a ser deformadas por acusações recíprocas; sua atração mútua, dom do próprio Criador, se transforma em relações de dominação e cobiça; a bela vocação do homem e da mulher a ser fecundos, multiplicar-se e sujeitar a terra é onerada pelas dores de parto e pelo suor do ganha-pão". Cada cônjuge recebe o outro ferido pelo pecado. Cada um traz de casa as marcas positiva e negativas da própria educação, as lembranças boas e más do passado, as virtudes, mas também os vícios. E o amor só é concreto quando o recebemos por inteiro, não somente com as suas qualidades, mas também com seus defeitos, não somente com suas capacidades, mas também com suas deficiências, e que benditas deficiências, benditas chagas, que mereceram o sangue de Cristo, e podem ser restauradas, transformadas em verdadeiro manancial de amor! A narrativa de Jó 1,1-2-10 mostra um homem provado pela perda dos bens, dos filhos e da própria saúde. Ele foi provado na confiança quanto ao amor gratuito de Deus e permaneceu firme, mas sua mulher não passa pela prova: ao invés de encoraja-lo, instiga-o a se rebelar contra Deus. Se formos meditar no que talvez passasse pela cabeça da mulher de Jó, talvez compreendamos que ela não compreendeu o marido porque não compreendeu Deus. Em Tobias 2,11-14 vemos duas pessoas boas que se amam, amam a Deus, mas diante do sofriemento, se desentendem, colocando à tona ressentimentos recíprocos e ressentimentos de Deus. As provações são um teste da relação familiar, que podem trazer à tona tanto o que há de melhor em nós, como o que há de pior. Tobias e Ana acabam superando a prova quando reconhecem: " Justo és tu, Senhor, e justas são todas as tuas obras. Todos os teus caminhos são misericórdia e verdade. É o juiz do mundo". Nunca diga que o outro não tem jeito, não limite o poder de Deus na sua vida. Foi por falta da fé do povo que Jesus quase não pode fazer milagres em sua terra. Mas fez em todos lugares em que o acolheram e creram verdadeiramente nele. Quando não acreditamos no outro, nossa falta de confiança recai como uma ofensa ao próprio Deus, que tudo pode. Deus criou o mundo do nada, e do nada pode recriar cada esposo ou esposa, cada filho ou filha, enquanto houver alguém alguém que abra a porta da casa para o Seu Filho entrar ...e ficar. Digo ficar porque para alcançar certos milagres precisamos deixar que Cristo fique em nossa casa, more conosco o tempo que Ele achar necessário para preparar o milagre. As irmãs de Lázaro ao verem que Jesus demorava, quase se impacientaram ao dizer: Senhor, se tivesses estado aqui meu irmão não havia morrido. Mas também disseram: Senhor, aquele que amas está morto, cheias de esperança na realização do milagre. E Jesus manifestou-se ressuscitando Lázaro porque Ele sabe o tempo certo para cada coisa. O importante é nunca desistir. Deixar que Ele vá e venha como e quando quiser, ou até durma, como aconteceu na barca de Pedro, para acordar na hora certa e acalmar a tempestade. "Não obstante, a ordem da criação subsiste, apesar de gravemente perturbada. Para curar as feridas do pecado, o homem e a mulher precisam da ajuda que a graça de Deus, em sua misericórdia infinita jamais lhes recusou. Sem esta ajuda, o homem e a mulher não conseguiriam atingir a perfeição da união de suas vidas para a qual foram criados "no princípio". O olhar de Deus vai muito além do nosso e ele quer o pecador curado e renovado. Quando duas pessoas se conhecem e se escolhem, elas conseguem ver muito além o potencial uma da outra. Neste momento de graça ela vê o outro como Deus o vê e o recebe como Deus o recebe. Deus vê a pessoa nas suas possibilidades, à imagem de seu Filho porque Ele pode realizar isto. E a graça do matrimônio nos capacita a ter esta visão do outro, ultrapassando aquilo que ainda está para acontecer e que não existe ainda, como uma palavra de profecia. Porém o descuido na vida espiritual, tanto na oração como nos pequenos sacrifícios feitos por amor a cada dia, vai fazendo volta ao velho egoísmo contra o qual temos que lutar a vida inteira, sem descanso, e só vemos as decepções, as desilusões e os defeitos do outro, esquecidos de que no casamento, uma pessoa imperfeita pode contribuir grandemente para o aperfeiçoamento da outra, e isto vale para ambos os cônjuges, porque ambos são imperfeitos. Não nos meçamos um com o outro, não nos comparemos, porque "dois seres imperfeitos não podem conviver e se corrigir se não tiverem Cristo como Pedra Angular, único modelo e medida. Será nos despojando do nosso velho olhar para com o outro e olhando um ao outro com o olhar de Cristo que nos ergueremos mutuamente, porque no matrimônio, tão grande é a unidade, que nenhum pense que derrubará o outro sem cair também. "Na sua misericórdia, Deus não abandonou o homem pecador. As penas devidas ao pecado, "as dores da gravidez e de dar à luz" (Gn 3,16), o trabalho "com o suor de teu rosto" (Gn 3,19) constituem também remédios que atenuam os prejuízos do pecado. Após a queda, o casamentos ajuda a vencer a centralização em si mesmo, o egoísmo, a busca do próprio prazer e a abrir-se ao outro, á ajuda mútua, ao dom de si". O amor do outro constitui um convite permanente ‘a transformação, a restauração da sua dignidade. Se isto vale para todos os relacionamentos humanos, que dirá para o matrimônio, relacionamento humano mais íntimo que existe, porque envolve não somente a carne, mas o espírito. Para viver este amor que transforma, muitas vezes no deserto de muitos anos, é preciso tomar a cruz todos os dias, não como quem toma um pesado fardo ou uma maldição, escândalo ou loucura, mas assumindo o verdadeiro sentido da Cruz, que para os eleito é "poder de Deus e sabedoria de Deus, pois loucura de Deus é mais sábia do que os homens e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens". (I Cor 1,24-25). " No limiar da sua vida pública, Jesus opera seu primeiro sinal – a pedido de sua mãe – por ocasião de uma festa de casamento (Jo 2,1-11). A Igreja atribui grande importância à presença de Jesus às núpcias de Cana. Vê nela a confirmação de que o casamento será um sinal eficaz da presença de Cristo". Quando o Santo Padre, o Papa João Paulo II esteve no Brasil em 1998, fez uma belíssima e concreta homilia sobre as Bodas de Caná, lamentando como falta o vinho da alegria aos matrimônios nos quais não há nenhuma disposição ao sacrifício. Ele lamentava o grande número de separações entre os esposos "desistentes" diante das primeiras dificuldades da vida em comum, porque desta forma, sem que as uvas sejam pisadas, não há como chegar a experimentar o vinho da verdadeira felicidade dos esposos, que superam em muito os prazeres tão frágeis pelos quais se costuma trocá-lo. De fato, não podemos encarar, como muitos o fazem hoje, a separação dos cônjuges a vitória de um sobre o outro. De uma separação, ninguém sai vitorioso, embora por vezes um ou os dois pensem ter-se libertado. Se houve Sacramento, se Deus os fez uma só carne, a carne agora constituída pelos dois está ferida pela separação. Como alguém pode ferir a si mesmo e acreditar-se aliviado? São Paulo escreve aos esposos: " Ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; ao contrário, cada qual a alimenta e a trata como Cristo faz à sua Igreja, porque somos membros do seu corpo. Por isso o homem deixará pai e mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne. Este mistério é grande, quero dizer, com referência a Cristo e à sua Igreja. Em resumo, o que importa é que cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido"(Ef 5,29-33). Jesus veio para restabelecer a ordem inicial da criação perturbada pelo pecado. "Ele mesmo dá a força e a graça para viver o casamento na nova dimensão do Reino de Deus. É seguindo a Cristo, renunciando a si mesmos e tomando cada um a sua cruz que os esposos poderão compreender o sentido original do casamento e vive-lo com a ajuda de Cristo. Esta graça do matrimônio é um fruto da Cruz de Cristo, fonte de toda vida cristã" Na Cruz, Jesus perdoou todos os seus algozes incondicionalmente, e orou por eles. O perdão é um dom do alto, que nos vem de Cristo crucificado por nossas faltas e ressuscitado para nossa salvação. Por isto, ele não é vitória de um sobre o outro. Quem perdoa não é maior do que aquele que foi perdoado, e quem foi perdoado, nada deve ao que gratuitamente lhe perdoou. Quando nos lembramos que Cristo perdoou todas as nossas faltas sem que as merecêssemos, como podemos negar o perdão ao nosso cônjuge?